sexta-feira, 30 de abril de 2010

O conto das quatro Luas


Lua Nova, momento propício para caminhar nos campos, nos Bosques. Uma áurea luz promove o aparecimento dos grilos e cigarras. Enquanto os jovens pássaros se recolhem aos galhos mais altos, Nuara afasta os cabelos negros para trás e finge não estar ali, carregando ao colo uma cesta de pães para os vizinhos de sua casa. É cedo ainda, mas a jovem sente um peso nas costas e os pés já estão molhados de suor. Atravessa o cercado que dá para o sítio das Noras e tendo somente os sons dos pequenos animais para lhe orientar, Nuara sai à procura de raízes para seus chás e preparos. Nuara estava indecisa, havia que escolher uma planta, mas lhe ensinaram que precisava da influência da lua para poder fazer a cura. Parecia que se tornara incrédula para as coisas que deveria acreditar!
“Cadê a planta, meu Deus?” Seguiu um pouco mais, desorientada pela escuridão da madrugada. Cá de baixo das árvores era como se não houvesse mais luz: tudo era inédito e sem rumo. Nuara abaixou-se sob uma grande árvore já seca pelo tempo ruim. Lá estava, haveria de preparar uma mistura bem forte para matar a bicheira de Naninho, filho de Lia, a mulher do apanhador de lenha.


Lua Crescente, Nuara encontrara um novo amigo. Ele vinha ao campo todo mês, trazendo as novidades do mundo de fora. Um dia, ao passar no portão do sítio, a moça pedira-lhe um livro para estudar Ciências. O rapaz rira de sua curiosidade, porém trouxera-lhe um Atlas histórico-geográfico com gravuras e mapas. A moça achou um encanto e passou várias tardes situando-se no Universo, na história. Havia fatos demais para entender e seu mundo de fogões a lenha e rio de pedras quase não lhe davam a chance de captar a essência das coisas dos homens de lá.A lua estava no ponto, dando lugar para o plantio de rosas e acácias... Num futuro haveria um jardim bem ali, perto da cerca para indicar que na casa uma mão suave governava as paredes brancas. Haveria arroz para cultivar no vasto terreno a sua volta.


Lua Cheia ... plenamente mulher, Nuara realiza seus desejos de acreditar mais nos cantos e ditos populares. As maçãs e laranjas completam as fruteiras, deixando as mesas sempre coloridas. Nuara anda a cavalo, nada no riacho, passeia pelo Bosque. Nessa semana, porém, a moça também decide ir à Capital, ver o mundo, as pessoas, as histórias de outras gentes. Dizem que mensalmente as mulheres, nessa fase da lua, tornam-se mais independentes e salientes. Nuara ri por dentro ao ouvir isso. Embora considere haver um pouco de verdade nessa idéia. Rememorando os meses anteriores, lembrava-se vagamente de que nessas luas tanto ela quanto outras mulheres do sítio estavam sempre a discutir sobre alguma coisa.
Em seu passeio pela Capital, além das ervas do Mercado, os livros atraem a atenção da jovem. Ela se põem a namorar as vitrines que à noite estão iluminadas de néon. Já é de madrugada quando retorna num ônibus sacolejante. Nas mãos um livro de Ciências Naturais. Puxando um pouco a cortina encardida do ônibus, Nuara dá de cara com a lua cheia. Na imensidão escura da terra, seu brilho amarelado se estende até longe, indo refletir opaco num açude que já vai ficando pra trás. “Quem determinou que Seu Marquim deveria ter nascido com um olho torto e não ter mulher alguma para lhe velar na velhice enquanto que o irmão, seu Torquato, mulato de cabelo liso tivesse a enorme e sempre cheia mulher para lhe preparar a cama e esquentar os pés?”
Nuara não atina com as coisas complicadas. Em sua simplicidade, define os seres e objetos pela experiência do dia-a-dia. A percepção de quem determina a força e o destino de tudo, é de desconhecimento humano. Para ela, a Lua trabalha nos campos, deixando cheirosa a mangueira carregada de frutos...




Lua Minguante ... os frutos agora estão pontos para as bocas ávidas... é época de plantar os alfaces e derrubar o mamoeiro murcho há algum tempo. “Será que a chuva ajudará a apagar a poeira levantada pela caravana de gente pobre?” Eles andaram quase todo o dia, pediam de sítio em sítio uma esmola, uma muda de roupa, uma rede, uma pousada, uma ágüinha, em nome do padim padre Cícero! No coração havia uma dúvida: ser tão bondosa com esses que tinham fama de pilhar, atacar as plantações, receber e nem agradecer seria tão compensador assim? Mas os velhos desses grupos, de pele tostada e olhos arredondados, sempre traziam-lhe flores de jasmim para Nuara pôr no cabelos negros. Eles sempre sorriam, um sorriso humilde e malicioso, cantavam altos quadrilhas já há muito esquecidas...
Nuara divaga, em sua solidão minguante. Percebe, mirando a luz fraca que cobre seu jardim que as respostas para seus anseios de saber mais estão para além das letras e papéis trazidos pelo amigo da lua crescente. No livro que trouxe da capital, as imagens e fotografias das plantas, raízes e animais não dizem o momento certo de puxar da terra a hortelã de folha miúda que acaba com a dor do estômago de sinhá Nina nem explicar a hora exata que o homem deve sair para caçar o preá para encher a barriga de seis crianças de olhos arregalados e barriga bichenta. Explicações detalhadas de forma e conceitos, mas nada de cheiro de orvalho, pio de coruja, caminhos de mel para dizer que a terra está pronta, a chuva já vem, ou que os pássaros e abelhas começam a aumentar sua família. A próxima lua lhe dirá o melhor momento para completar seu ciclo de curandeira das matas...A Lua mingua um olhar... Nuara sorri, enxugando as mãos nas saias e sai para fechar o portão de sua casa em mais uma noite.


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Publicado em www.correiodatarde.com/artigos/6479

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Imagens: As quatro luas de Jupiter descobertas por Galileu - Pesquisa Imagens Google