sábado, 2 de maio de 2009

Os xales [lembrando que nesta semana é dia das mães]

O tear batia para frente e para trás. As mãos ágeis cruzavam as linhas como quem trama os destinos: apertando aqui, soltando ali; colocando um fio prateado nessa parte, juntando um punhadinho de linha mais à frente; outra laçada, um nó e pronto, tava feita a vida, tava feito um xale de noite.
Em nenhuma parte dele ficavam os vestígios das mãos que o tecera. Em nenhuma franja denotava o árduo trabalho das mãos enrugadas e calejadas a gerar as tramas.
Era um xale para a noite. Preto, comprido, quente. Feito a noite, feito o destino, feito a vida, feito o abraço. Veio ao mundo com um irmão gêmeo, como distinção só as tramas na vertical.
O marido trouxe. Um para ela, a mulher, outro para a filha, o orgulho. Destinos tão diversos.
Porém, cada xale era único, era um, era uma marca. A única semelhança: xale para a noite, para o brilho. Para a névoazinha que cobria a vastidão da Serra em noites de São João.
Em uma, o xale vestia para as missas, os encontros da igreja, a missa do Galo, da Páscoa, da comunhão, em dias de luto, de dor, de guerra.
Em outra, o xale vestia para os bailes, para as despedidas, cantorias na madrugada, para o orvalho do beijo ao amanhecer.
Por duas gerações inteiras os xales sobreviveram. Um ficava no velho baú ao pé da cama. O outro, dobrado no cabide colocado no escuro guarda-roupa. Vidas distintas. Mulheres distintas.
Em uma o vestígio da outra: olhar seguro, ombros delineados, pernas torneadas. Em ambas, o xale caia com ar de leveza.
A vida corroeu-se aos poucos, levando graça, beleza, olhares alegres e sonhadores. O xale de ambas permaneceu. Cada um intacto. Fibra tecida sem vestígios de dor, abandono, lágrimas ou solidão. Seda entrançada de fios pretos e prateados, franjas balançando ao movimento. Na cadência das estrelas, enfeitando a vida. Xale para festa: felicidade resguardada pela fragilidade de linhas seguras. Xale para a fé: vínculo guardado com coisas eternas, marcado pelas lágrimas e contas rezadas.
As mulheres se foram, mãe e filha levadas pelo tempo do século passado. Os xales ficaram em mãos diferentes, distantes um do outro, sem a renovação pela vida-dança ou pela oração-sofrida.



* Publicado pela primeira vez em
www.anjosdeprata.com.br. Aqui, com pequenas alterações no título e no final.

Nenhum comentário: