sábado, 8 de agosto de 2015

uma cena de 2003

Naquele dia, ela seguiu todo o esquema de seu cotidiano: estendeu os lençóis bem abertos, prendendo-os com a firmeza dos prendedores de plástico. Juntou os brinquedos espalhados do quarto ao corredor indo todos chegar até a área em frente à casa. Nenhum som havia acordado as crianças (ainda) e sorriu. Hoje é o dia de apagar os rastros...

A despensa ficara vazia. O fogão desligado. A mesa em ordem, sem pratos, nem copos sujos. Por instantes, a ordem era tão cheia de realidade! E ela sorriu de novo.


Nada de beijos, broncas, correria, hora de mingau, hora de jogo de encaixe, hora de nanar, hora de inventar...ô relógio amargo dessa vida - a me controlar!


Caminhou, caminhou, caminhou...até encontrar a rua dos consertos. Em cada lojinha cabia algo quebrado. Carregava uma sacola de plástico. De vez em quando os objetos se encontravam na sacola e se ouviam os sons das peças soltas. Haveria conserto para mulheres más!?


Vai deixar tudo isso?

Sim.
Metade adiantado.
?
Os clientes têm mania de deixar as coisas e ir embora e eu fico no prejuízo. Agora exijo logo. Mas você não tem cara de que vai largar essas preciosidades...hehehe..

E ela viu o cinismo nele. Os bigodes enormes. Homem esperto. Não, homem burro!


Tome. 

Mas eu nem disse o valor!
É para cobrir os gastos com o que não tem conserto!

E riu. Riu de si mesma. Riu da sala aberta, com as cortinas voando livres por sobre o sofá azul. Todo o tempo do mundo cabia na casa agora, sem medidas, tics-tacs, controle ou vigias. Todo o tempo do homem que trouxera os relógios da casa da mãe estava naquela sacola. Ela disse que você não sabe organizar o tempo! E, aos poucos, todos vieram para alertá-la, orientá-la. Em cada cômodo, nas estantes, na parede da cozinha...ao lado da cabeceira da cama. Pluft! Agora, estão na rua dos consertos...Já poderia ir embora de vez, como planejara um dia.


A mesa redonda, de madeira simples só faltava cair, com a brutalidade e a agitação das crianças. Cada uma queria uma coisa e cada uma não queria nada. Quem não comia, chorava. Quem comia, reclamava. Quem olhava, murchava. Meia hora para comer! Comer com calma, mastigando. Não fale com a boca cheia! Tome o suco. Olhe a hora! Vai perder a aula. Já tomou o remédio? Olha a roupa, vai manchar tudo. Quinze minutos e o prato cheiinho ainda!!! E o diabo desses ponteiros andando! 


Tchau, gente. Vou-me embora!


Nem notou o vestido de casa, com buracos. A chinela velha. Abriu o portão e se foi.


Claro que voltou. Meia hora depois. Sem lágrimas. Rosto renovado. Descobrira a doença  de que tinha que se livrar. A mesa estava endireitada também. A criança tinha as mãos gordas e lhe secava o rosto suado, do calor do meio dia! Faça mais isso, não! Todo mundo comeu, mas chorou também, com medo de tu não voltar....E tu voltou. E tu voltou... Eu falei para eles...ela só precisa de tempo.


Os olhares negros se encontraram, ela se lembraria disso para sempre. Não, criança, eu não preciso mais de tempo. Me livrei dele!




*  *  *



                                           Paul Klee: Dancing Girl, 1940.

                                          Pesquisa Google: http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/10018