sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Amor de cão*



            A mulher morreu, não de morte morrida, mas de morte matada, como diriam os velhos de minha cidade. A rua inteira presenciou a cena cruel e maldita. O filho, perdido e pecador já de muito tempo, dera-lhe oito facadas. Outra cena desse mundo brutal que vira manchete de tevê. As dores de mãe que sofre duplamente. Houve choro, dor, sentimento de ruína, insônia, desespero e falta de palavras. Houve gente que quis vingança, mais morte, chacina, “olho por olho, dente por dente”. Dias depois, a casa vazia mantinha o cachorro, fiel amigo, dormindo na calçada. Tristonho, faminto de carinho, vez por outra, levantava o focinho à procura da mão idosa que lhe trazia a água, a ração, o afago. E nada vinha. A família já havia vendido a casa, mas o cão estava lá. Ninguém tinha forças para levá-lo dali. Os filhos que ficaram, pareciam sem rumo, o velho pai só queria outro mundo, outra vida para esquecer a dupla tragédia de Nova Parnamirim. Todos estavam em frangalhos: os nervos, a vida, as lembranças agora apagadas com aquela morte. O filho, triste farrapo humano, estava preso para sempre agora.
            Na sombra amiga da enorme árvore que cobria a varanda, o cachorro permanecia quieto, até as crianças ficaram-lhe estranhas, nem mais lhes latia, causando-lhes gritos de sustos. Um grande silêncio entrara-lhe na alma animal e parecia que tudo na casa possuía uma mancha de sangue. A polícia viera tantas vezes procurar mais provas para o bárbaro crime. Os repórteres iam e vinham carregando seus apetrechos de sempre. Um click aqui e outro ali, mas ninguém percebia o enorme cão deitado na calçada. Já eram tantos os estranhos que entraram para ver a cena do crime, que ele nem mais grunhia para espantá-los. As horas passavam tão sem gosto, todavia não era tédio que havia ali. Era um sofrido e imenso silêncio. Sem vazio, sem calor, só a brisa de agosto, passando cheia de poeira, deixando o focinho do cachorro mais sensível... De longe, alguns latidos externos suavizavam a solidão do animal, já também um pouco velho e cansado, nem respondia mais...
            Lá pelo dia 28, um ruidoso estrondo encheu o ar da vizinhança. Homens parrudos de braços escuros e musculosos atravessaram o portão da casa, carregando marretas. Um por um levantou o braço, batendo aqui e ali. Foi preciso apenas um sábado para a casa inteira vir abaixo. Prenderam o cachorro debaixo da árvore e só pararam, quando às onze horas, um dos filhos da mulher morta chegou com as marmitas com o almoço. Todos comeram em silêncio resguardados pelos olhares ao chão. Nem mesmo nessa hora lembraram-se do animal de estimação, que de tão triste, não se mexia. Nada comera, só ficou, olhando longamente pro vazio da rua, dessa vez também vazio da casa que se fora. Fora uma longa noite de sábado.
            O domingo chegou e alguns moradores vieram ver o que sobrara da casa antiga. Entulhos, restos de paus e ferros, uma estrutura que ruína por completo: da família à casa. Tentara-se apagar as marcas da cena que horrorizou a cidade, mas a memória de alguns ainda guarda o que se passou. Uma velha grade jazia encostada ao pé do muro, foi quando, ao removê-la para junto dos outros entulhos que estavam indo para o caminhão parado na calçada, um dos filhos dera com o cão inerte, estendido ali, entre a grade e a parede escura.

            O coitado do jovem quase sucumbira junto à cena tão dura e tão cortante. A pura realidade que estava para ser apagada para o sempre; agora não apenas o silêncio da ausência marcaria aqueles dias de brisa leve, agora também o silêncio da morte do cão fiel pairaria nas almas passantes daquela rua tão distante de tudo...    


* Crônica publicada em 2005 no Jornal Tribuna do Norte - e no extinto blog "Anjos de Prata", após crime bárbaro acontecido na cidade de Parnamirim.




Imagem: Acervo Portal Portinari: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/4252