sábado, 20 de dezembro de 2008


Deixei meu pai ali bem debaixo
Do pé de cajueiro,
quietinho, guardado
nem parecia mais ser ele
o homem forte, valente
cheio de vida
que conheci um dia.
Deixei meu pai
Ali – junto ao pé de pau.
Um bem-te-vi solto
vem cantar todo dia,
um joão-de-barro levou
sua casa para o cajueiro
e do alto observa a paisagem.
Uma serra imensa,
um cantador de viola,
um canto de paz.
O cajueiro a florir em outubro,
carregar em dezembro,
a guardar meu pai em sua sombra
– como ele gostava
Araceli Sobreira
(lembrando um ano de encantamento de Pedro Feitosa)


.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008




Para Marília, Renata e Rosinha...


Com paixão
com o que nos falta:
a vida,
a liberdade,
o corpo,
a língua,
o riso,
o carnaval.


Com paixão
com o que nos une:
o máximo, as paredes, a estrutura.


Com paixão
com o que nos corta:
a escolha, o massacre, a rotina.


Com paixão
com o que nos define:
o bordado, o toque, o sutil
a dor.


Com paixão
com o que nos cega:
a chuva,
a lágrima,
a verdade,


Com paixão
com o que nos divide:
a razão, o medo, a queda, o pecado, os filhos, a costela...



Com paixão
com o que nos eleva:
as flores, a seda, a estrada do bosque...


Com paixão
com o que nos faz ser:
a renda, a cama, o ventre.


Com paixão
com o que nos faz crer:
a palavra, o pão, o milagre.


Com paixão
com o que não nos deixa viver:
o tédio, a ruga, as ruas, o fogão.


Com paixão
com o que nos explode:
a loucura, os monstros, o lobo mau, o tempo e o espelho...


Com paixão
com o que nos vivifica:
o mito, a fé, o sangue.

Com paixão
com o que nos assusta:
a paixão, o esmalte vermelho,
o olhar profundo, expressivo, inesquecível,
o perfil de um Deus grego,
a vida, o riso,
o carnaval, o vinho,
a carne, a ternura e a liberdade...


Coisas que só existem
em almas com muita paixão!


Em 25.03.06

domingo, 23 de novembro de 2008

Araceli Sobreira


Quisera eu deixar
de ser formiga,
poderia cigana virar,
cair na vida...
Ser só gente,
pensar nuvens, mundo, ser só ponte, fluido
atravessar ruas sem sentido.
Quisera eu ser inocente,
leve, luz radiante,
tempo ausente
ao luar do sertão, fina chuva –
sem nada na mão...
Quisera eu cigana ser,
cantar o dia, viandante,
flutuar na vida, espairecer,
somente feliz amante
a dormir no inverno, tranqüila
tal qual uma menina.

Em 05/08/2007.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O Parto*
Araceli Sobreira Benevides
Maio de 1937. Ano muito difícil aquele. Crato vivenciava perseguições, correria e medo. Em toda parte as pessoas se retiravam mais cedo, as casas comerciais fechavam antes da hora para se resguardar das "volante" que revistavam os moradores por causa do beato José Lourenço.
Amália dobrava a mantilha usada para rezar no oratório. Os joelhos ardiam inchados. A barriga tremia desde a madrugada. Estava enorme para o primeiro filho. Todos se admiravam. A mulher estava só. Ninguém a visitava há dias. O marido subira a Serra do Araripe para trazer madeira e isso lhe causou uma angústia de louca. Antes de ir, Luiz Teixeira dissera com a segurança que sua voz grave e seca sempre tinha:
- A índia Uiara virá mais tarde. Vou, mas não me demoro. Laura só vem quando minha mãe chegar para ficar na casa.
Ninguém veio. Amália não tinha mãe, o que sabia, sabia de solidão, de olhar, de ver, coisas que para ela eram diferentes. A data estava errada, com certeza. O padre avisara que era assim mesmo.
Amália queria mexer-se. A barriga pesava, os pés doíam, mal dava para dormir agora. Lembrou-se que tudo estava pronto: as roupas brancas - em cima da cômoda, recém talhada pelo marido marceneiro - engomadas e envoltas em folhas secas de lavanda, os pagãozinhos, três ao todo, cozidos e bordados pela irmã mais velha, a Noélia. Tudo dentro da mala preta que veio no lombo do burro guiado por seu Jessé - do sítio Fornalha. Mesmo com o clima bom da época, a mala de couro chegou empoeirada. Amália limpou a mala, lavou a roupa, guardou a tesoura grande dentro da mala e afivelou as correias, deixando-a na cadeira ao lado da cama. Achou que o marido não aprontaria a cama a tempo:
- Apôs, mulher, vê se eu sou homem de prometer e não cumprir? E eu ia deixar tu dormir em rede, já parida? Quê!
No dia que viu a cama pronta, ela chorou. Dois dias depois, o marido foi para a mata. A mulher ficou só, se tinha medo, nada falou. Pegou o candeeiro e duas velas, trancou as portas e foi dormir.
Amália estava ali, agora, ruminando uma dor no estomago, uma gastura por dentro, um rói-rói que não se acabava. "Nhá Luzia disse que era menino cabeludo que tá por vir", pensando assim, foi pegar mais água, "para ficar mais prevenida". Jogou o balde na cacimba e quando ia começar a puxar, ouviu a voz gutural da índia Uiara chegando:
- Menina, tu quer morrer? Puxando balde na hora de parir? - a velha empoeirada e coberta de uns trapos pretos pegou a corda da mão de Amália. Mascando um fumo, arrastava uma sandália de couro grosseira. Entrou em casa e pôs o balde do lado do fogão à lenha, já aceso de muito. A grávida preparara logo cedinho o caldo da galinha conforme D. Coriá havia ensinado.
- Muito claro, muito claro. Menino novo quer escuro, quer erva cheirando - dizendo isso, foi logo fechando as janelas - Deixa eu ver a barriga. O ventre tá baixo, muito baixo e pesado. É pra hoje. Noite longa, mulher, noite longa.
Os olhos da índia brilharam no escuro da casa. Amália detestava cheiro de fumo, lá veio de novo a gastura e a cuspideira. A índia fedia e isso a deixou um pouco tonta. Sentiu as mãos grossas da velha empurrando sua barriga pra baixo, forçando muito. Não gemeu, mas quis cair, as pernas fraquejaram um tanto. Faltou-lhe ar, quis ir para perto da janela, mas a mulher a empurrou para dentro, em direção à parede do quarto. Tirou de si uma cinta de couro entrançada e cingiu a barriga enorme de Amália. Enquanto cuspia no chão, avisou:
- É para forçar a barriga, ajuda a cria a descer - E amarrou as pontas com força, pelas costas da jovem.
Veio a dor no pé da barriga, outra dor forte em cima dos quadris, uma secura na boca e mais dor. Queria andar, mas a velha índia não deixava. Balançava a cabeça de cabelos espetados, com cara feia. Resmungava umas palavras desconhecidas para a mãe que se preparara calmamente para aquele dia.
Desde o momento em que a irmã mais velha disse-lhe que seria mãe, Amália era a tranqüilidade pura. Trabalhava como sempre trabalhou: bordando, cozinhando, capinando, debulhando o milho, o feijão e a barriga crescendo. A chuva caiu, alagou o açudezinho por detrás do bananal, a mulher ajudou o homem a cercar o galinheiro, salgou a carne que veio do sítio do compadre Ananias, tirou os buchos, cozinhou-os, distribuiu e guardou as sementes que trariam a fartura para seu filho, previsto para maio daquele ano.
Os medos iam crescendo, embora afastados da mente quando tirava o terço do bolsinho do vestido de algodão grosso que sempre usava. Não tinha manha, não tinha enjôo, nada que lhe deixasse parada. Ela só parava diante da agulha e do pano que criava formas leves pelas mãos daquela mulher. A irmã tinha uma menina nova, em torno de dez meses, não podia ficar na casa do cunhado. Era uma sina, naquela época e naquela chapada sem fim, a mulher ser sozinha no mundo. Quem não tinha mãe ou sogra para cuidar, ficava nas mãos das parteiras do povoado ou do sítio mais próximo. Amália não gostou da índia velha no dia em que ela apareceu no sítio pela primeira vez. Porém, o marido, vendo que não iria ajudar, por conta dos negócios, concordou em aceitar a parteira desconhecida.
A tarde de 10 de março foi sumindo no horizonte, a casa começava a cheirar a vela derretida. Amália queria banhar-se, refrescar-se na água gelada do pote. Mas a outra não permitiu. Levantou os braços da buchuda e puxou mais ainda o cinto, encostando-a contra a parede do quarto. Amália começou a sentir que sangrava pelas pernas abertas. Escorregou sobre os joelhos fracos, agarrando-se no pé da cama. Não conseguia puxar o ar. Olhou ao redor e viu seu lindo quarto todo escuro, cheio de velas acesas e panos jogados pela cama. Lutando contra a dor, tomou das forças que tinha e se levantou, indo em direção à mesa de imbuía existente perto da janela. Molhou o rosto na bacia de ágata, procurando soltar o cinto que lhe prendia o ar. Nem bem deu dois passos, um estrondo quebrou o silêncio da casa. A índia havia se movimentado para prender de novo a mulher teimosa quando ouviu outro estouro.
Amália lembrou-se dos bichos no quintal, mas sabia que não conseguiria chegar nem ao oitão da casa tamanha era sua dor. A indiazinha desapareceu por instantes. Foi ver se não era arma de caçador. Ao chegar na beirada da cozinha, viu uma sombra por sobre a casa e, ao erguer os olhos, outro estrondo, este mais forte, tomou conta de toda terra. Depois, outra sombra cobriu as árvores mais longe, em seguida, mais outra e outra. Uiara correu para casa, pegou seus trapos e desabou em direção à mata, deixando Amália à beira de dar à luz sozinha.
A índia gritava feito uma louca:
- É o demo, é o diabo, é o cão rabudo!
Dentro da casa, o jovem mãe, presa ao cinto, tentava soltar-se usando as poucas forças que lhe restavam. De repente, sentiu as pernas molhadas, respirou fundo, afrouxando o vestido e o cinto. Conseguiu, então, sentar-se no assoalho lavado de sangue e de uma gosma amarela. Amália assustou-se, mas lembrou-se de Nossa Senhora e de que, talvez, todos aqueles imprevistos eram para salvá-la. De algum modo, abriu a camisa que tinha por baixo do vestido e empurrou suas pernas para tentar se apalpar. O menino saíra morto, roxinho, roxinho. A mãe conseguiu puxá-lo para si e o envolveu nos braços. Novamente, uma sombra passou por cima da casa, quase a arrastar as telhas. A zoada no céu da Serra parecia não acabar. Amália fechou os olhos, lembrando o menino Jesus no seio da Santa Mãe.

* * *

- Valhei-me, meu padim Ciço, valhei-me. Mas não é que a mulher pariu sozinha, neste mundo de meu Deus - o soldado apavorado gritou por socorro e mais de uma dúzia de homens baixos, fardados e armados invadiram a casa de Luiz Teixeira - o marceneiro.
- Acudam, acudam!
O capitão Alarico chegou pingando, pensou imediatamente que os homens acharam o Beato fugitivo. Bateu com as botas na soleira, impondo respeito, ao entrar na casa simples. Mal acreditou no que viu.
- Que é isso, minha gente?! O que houve aqui?
- Capitão, fomos nós, capitão, fomos nós, o susto deve ter matado a coitadinha.
- Que é isso, homi? A coitada morreu de parto, sozinha nestas brenhas...isso sim!
- Cobre ela, cobre, e vá achar alguém da família.
O soldado se tremendo de assombro pegou a manta em cima da cômoda para cobrir a moça deitada no chão, quando ela se virou mansamente:
- Por favor, não, não, a manta branca não! - Gemeu, levantando a mão em direção à cômoda.
Os homens estancaram. Um soldado - que tinha visto a filha nascer - levantou Amália cuidadosamente e a deitou na cama. A mulher lhe pôs o filho morto nos braços e virou o rosto pálido para chorar.
- A senhora está bem? Ela apenas os olhou, mas nada disse. Estava sem forças. Alguém lembrou de arrear um cavalo para buscar o cumpadre Luiz, outro se lembrou de acender uma vela, mais outro colocou o defuntinho na mesa da cozinha, cobrindo-o com a toalhinha do oratório. Umas poucas horas depois, o pai chegou. Já sabia que os aviões do governo voaram sobre a cidade do Crato e pela Chapada inteira para correr atrás dos seguidores do Beato. "Coitados, pobre gente sem instrução"! Ninguém, porém, teve coragem de lhe contar sobre a mulher, mas na alma daquele homem trabalhador e simples, acostumado a não se assombrar com nada, um friozinho passou tão logo pôs os olhos na mulher fraca e sem cor que encontrou sobre a cama de casal.
- Minha filha, o que lhe fizeram? O que houve? - Seu olhar achou o cinto desamarrado ao pé da cama. Foi aquela índia maldita, não foi?
- Quem, seu Teixeira, quem fez isso com sua senhora, homem de Deus? - O capitão adiantou-se no quarto, admirado com o cinto que o outro homem colocava em suas mãos.
- A índia, seu capitão, que mora lá pras bandas do sítio do Beato. Ela veio toda santinha, dizendo que fazia parto. Ah, maldita hora que deixei aquela mulher entrar aqui.
- Não se avexe, não, vamos pegá-la também. Isso é coisa que se faça a uma mãe de família? - O soldado saiu do quarto, levando consigo os homens de sua guarnição. - Vamos, homem, vamos, ainda não pegamos esses fanáticos.
A mão de Amália estava fria, quando recebeu um beijo do marido. Ele tremia de raiva. Ao abrir os olhos, ela sorriu e o acalantou tranqüilamente:
- Alguns imprevistos, meu fio, alguns imprevistos, só isso, só isso. Guarde a mala e abra as janelas, sim? Logo virão outros filhos, logo, logo...sonhei isso agorinha. Confia!
Luiz Teixeira abriu as janelas. A brisa fria entrou aliviando o ambiente.
* * *
Maio 1949. As mudas de roseira que Amália recebera de seu pai pegaram no clima ameno do inverno da Chapada do Araripe. Três crianças brincavam com três espigas de milho. Uma menina e dois meninos. Cada um tinha na boca um pouco de terra, um pouco do milho que roíam alegres. Amália estendia a roupa branca dos quartos. Estava prenhe de novo. Agora era hora de respirar o ar da Serra. Com três voltas bem dadas ao redor da casa e das árvores do quintal, ela paria quase sem dor. Cuspindo as crianças, para admiração das mulheres dos arredores.
As janelas estavam abertas. O oratório nem velas tinha, "para evitar os imprevistos"! Ao todo, Amália e Luiz Teixeira tiveram doze filhos:
- Um só natimorto, o resto virou tudo advogado, médico, juiz, tenente. As filhas-mulher eram todas professoras, todas casadas com homem de bem, como o pai!
Publicado como inédito em www.anjosdeprata.com.br

sábado, 15 de novembro de 2008

Pedra do Sertão

Pedras do meu sertão

incólumes
perenes
resistentes

seguras, quando rebeldes viram lascas
soltas, quando sonham rolam firmes
translúcidas, quando desafiam são amuletos

incrustadas na serra, revelam peixes
lavadas no rio, guardam tesouros
sentadas ao sol, são do sertão