domingo, 15 de novembro de 2015

Lembrando ainda do Rio Doce em plena vida...



A minha primeira viagem de verdade foi para o Ceará...em dezembro de 1978, para minha mãe pagar uma promessa. Viagem de 3 dias dentro de um ônibus - SP-CE, pela BR 116...o trecho mais lindo e mais longo é o que corta o Estado de Minas Gerais e onde fiquei mais encantada com as montanhas, estradas sinuosas e os rios...Depois fizemos outra viagem em dezembro de 1980. Em ambas as viagens, Minas Gerais era a beleza que me encantava...Nos anos de 1982, 1983, 1985, 1988, fiz alguns percursos entre a BR 101 e a 116, primeiro com meu tio Edgar e, depois com meu pai - de caminhão - em meus diários, descrevo impressões maravilhosas sobre o Rio Doce e o o rio Gandhu e as maravilhas que vi entre Minas, Espírito Santo e Bahia..."Nenhum livro de Geografia vai lhe ensinar nada do que você está vendo, minha filha, dizia meu pai"...Tem cidade muito linda por onde o Rio Doce serpenteia, mas bonito mesmo é quanto chega no Espírito Santo...você vai ver. No dia que passamos em Governador Valadares, eu fiquei em êxtase: lembrando das viagens de ônibus...de minha mãe...e da lindeza do rio. Papai sempre muito esperto, me observava o tempo todo: "Daqui de onde estamos, você vê aqueles doidos saltando lá de cima, do Pico Ibituruna, quer ver? quer ver? E papai freava, por cima da Ponte. Deixando-me ver os voos de asa delta (naquela época eu queria saltar de asa delta...ah os 19 anos!). Essas surpresas eram de tirar o fôlego e meu pai era ardiloso. Ele ainda me levou para ver a Pedra do Itaúna, em Caratinga, bem de perto! e tudo dizia que se eu saltasse, um dia, não seria um espanto, para ele...Ele já sabia de meu gosto pela escrita. Quando parava para abastecer ou fazer qualquer coisa, como martelar os pneus, lavar o párabrisa, aspirar a cabine, lá estava eu com meu caderninho de viagem...escrevendo...escrevendo...e ele perguntava: "o que tanto tu anota aí? E eu dizia: "Aqui é meu diário de viagem, para eu não esquecer de Minas Gerais, dessa estrada longa". E no jeito desavergonhado de seu Pedro de ser, arrematava: "Tu foi feita nessas estradas, no caminho para Belo Horizonte, lembra, não? Por isso, gosta tanto dessas pedras, dessas serras, desses rios!... Eu já cai num rio desses uma vez, sabia,?! Você nem tinha um ano. Fiquei preso no pedal do carro e quase morri....um dia conto!" ....Mas eu já sabia dessa história, minha mãe já havia contado uma vez.... e meus olhos voltavam-se para a ponte sob o rio amarelado de Governador Valadares..."um rio enorme...do tamanho do mundo...porque chegava em outro Estado"... pensamento que me vinha sempre que ali passava...e me lembrei dos olhos arregalados, grudados no vidro da janela do ônibus da empresa Transcariri...na primeira vez que ali passara, em 78...e é que ainda nem conhecera o São Francisco ainda...outro grande rio de minha vida e de meus diários de viagem!Por isso, me dói tanto, ver as águas do Rio Doce...enlameadas de morte...





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Imagem: Pesquisa Google: asa delta Pico Ibituruna

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Mulher pós prova do ENEM 2015 – quem tem medo?

Cena I
cá estou eu pensando nessa rua cheinha de poeira
enquanto madame ainda não levantou
ainda dá tempo de coar café e espiar o porteiro da esquina

Cena II
a menina colou o ano inteiro e nunca leu nada sobre o tal feminismo, Friedrich Nietzsche,  Paulo Freire, só queria balada, acontecer, virar vodka com qualquer coisa que a deixasse animada....

Cena última

cá está a mulher que passou a juventude irritada com as receitas e as panelas
lia Beauvoir , Sartre, Ricoeur, Foucault  e Barthes
um dia sacudira as panelas nas praças com as mães de luto
outro dia, lutara contra as correntes, os tapas, os porões, as máquinas,
mas não cozinhava nem lavava
o homem ao lado só comia: a comida, regada ao vinho francês e a mulher, das pernas grossas.

No dia da prova, a pia cheia, era coisa de mulher, para mulher.
A mágoa reinava na alma ferida.
Três dias para dar conta de tanta louça.
Nem Simone nem ninguém.
Nem os filhos nem o marido iriam lavar as tralhas da cozinha.
Tinha que ser ela mesma, com leitura, feminismo, lágrimas,
raiva, rancor, mãos suaves, porém, para deixar sua casa arrumada, do jeito só dela, para ir além da vida, começar novamente a comer, ser comida, dar de comer, por a comida na boca dessa gente toda do mundo que tanto precisa de vida!

Grand Finale

Nesse mundo onde as moscas mortas metamorfoseadas em homens  laboratórios e baratas verdes dólar fumegantes faltam mãos e panos para enxugar as louças velhas daqueles armários recém comprados nas grandes lojas numa promoção a perder de vista!



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Imagem: http://sensacionalista.uol.com.br/2015/10/26/enem-conheca-o-drama-de-quem-nao-tinha-google-para-ver-quem-e-simone-de-beauvoir/


sábado, 8 de agosto de 2015

uma cena de 2003

Naquele dia, ela seguiu todo o esquema de seu cotidiano: estendeu os lençóis bem abertos, prendendo-os com a firmeza dos prendedores de plástico. Juntou os brinquedos espalhados do quarto ao corredor indo todos chegar até a área em frente à casa. Nenhum som havia acordado as crianças (ainda) e sorriu. Hoje é o dia de apagar os rastros...

A despensa ficara vazia. O fogão desligado. A mesa em ordem, sem pratos, nem copos sujos. Por instantes, a ordem era tão cheia de realidade! E ela sorriu de novo.


Nada de beijos, broncas, correria, hora de mingau, hora de jogo de encaixe, hora de nanar, hora de inventar...ô relógio amargo dessa vida - a me controlar!


Caminhou, caminhou, caminhou...até encontrar a rua dos consertos. Em cada lojinha cabia algo quebrado. Carregava uma sacola de plástico. De vez em quando os objetos se encontravam na sacola e se ouviam os sons das peças soltas. Haveria conserto para mulheres más!?


Vai deixar tudo isso?

Sim.
Metade adiantado.
?
Os clientes têm mania de deixar as coisas e ir embora e eu fico no prejuízo. Agora exijo logo. Mas você não tem cara de que vai largar essas preciosidades...hehehe..

E ela viu o cinismo nele. Os bigodes enormes. Homem esperto. Não, homem burro!


Tome. 

Mas eu nem disse o valor!
É para cobrir os gastos com o que não tem conserto!

E riu. Riu de si mesma. Riu da sala aberta, com as cortinas voando livres por sobre o sofá azul. Todo o tempo do mundo cabia na casa agora, sem medidas, tics-tacs, controle ou vigias. Todo o tempo do homem que trouxera os relógios da casa da mãe estava naquela sacola. Ela disse que você não sabe organizar o tempo! E, aos poucos, todos vieram para alertá-la, orientá-la. Em cada cômodo, nas estantes, na parede da cozinha...ao lado da cabeceira da cama. Pluft! Agora, estão na rua dos consertos...Já poderia ir embora de vez, como planejara um dia.


A mesa redonda, de madeira simples só faltava cair, com a brutalidade e a agitação das crianças. Cada uma queria uma coisa e cada uma não queria nada. Quem não comia, chorava. Quem comia, reclamava. Quem olhava, murchava. Meia hora para comer! Comer com calma, mastigando. Não fale com a boca cheia! Tome o suco. Olhe a hora! Vai perder a aula. Já tomou o remédio? Olha a roupa, vai manchar tudo. Quinze minutos e o prato cheiinho ainda!!! E o diabo desses ponteiros andando! 


Tchau, gente. Vou-me embora!


Nem notou o vestido de casa, com buracos. A chinela velha. Abriu o portão e se foi.


Claro que voltou. Meia hora depois. Sem lágrimas. Rosto renovado. Descobrira a doença  de que tinha que se livrar. A mesa estava endireitada também. A criança tinha as mãos gordas e lhe secava o rosto suado, do calor do meio dia! Faça mais isso, não! Todo mundo comeu, mas chorou também, com medo de tu não voltar....E tu voltou. E tu voltou... Eu falei para eles...ela só precisa de tempo.


Os olhares negros se encontraram, ela se lembraria disso para sempre. Não, criança, eu não preciso mais de tempo. Me livrei dele!




*  *  *



                                           Paul Klee: Dancing Girl, 1940.

                                          Pesquisa Google: http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/10018

sábado, 4 de julho de 2015

Um ipê para Agnelo

Muitos escritores escrevem por vários motivos. Eu gosto de escrever para não me esquecer...para determinar pontos eternos e até para despistar a Morte...e essa criatura nesses dias chegou, na cidade onde moro, levando um de seus políticos mais importantes.
Não gosto de escrever sobre política. E, quando escrevo, sou radical.  Também não gosto de escrever sobre a Morte. Gosto de escrever poesia, sobre beija-flores, árvores e sobre aquilo que inexiste na língua comum.
Mas sou uma pessoa comum, com olhos de poeta espantada. Cheguei para residir em Parnamirim há exatamente quinze anos e alguns meses e a cidade foi mudando significativamente em todo esse tempo. Vez por outra cruzava com Agnelo Alves em eventos literários, cumprimenta-o e me divertia com o jeito simples, simpático daquele mesmo homem que reconhecia como o político da cidade. Como pessoa comum, a gente se cruzava no carnaval de Pirangi, nos eventos de minha rua, de meu bairro e, assim, fui me afeiçoando à pessoa comum com quem, de vez em quando, topa com a gente e que sempre tinha uma história a contar.
E eu adoro ouvir histórias...mas também adoro plantar árvores. E, no mundo antigo, havia povos que homenageavam seus mortos, plantando árvores para cada alma que se ia, significando que suas raízes, caules, troncos, frutos e flores iriam perpetuar o nome e a história daquele ser... E foi o que fiz. No dia que Agnelo chegou de São Paulo, por motivos mil, não pude me despedir dele do modo convencional. Fiz do modo Araceli de ser.
No dia seu sepultamento, estava juntando as árvores que iria plantar no canteiro da rua Petra Kelly, bem ali atrás do Boullevard. Um canteirinho por onde passo todo dia e que imagino cheio de plantinhas e árvores. Desde que a rua nem era asfaltada, vivo a plantar uma mudinha aqui e outra ali, assim como outras vizinhas e vizinhos o fazem na extensão de toda a Petra Kelly, na tentativa de torná-la esteticamente florida... Havia chovido e alguns funcionários da prefeitura estavam fazendo a limpeza, retirando os matos, varrendo e juntando os entulhos. Já havia passado pela rua umas duas vezes e acompanhado o ponto em que eles estavam limpando, para dar tempo de chegarem exatamente no canteiro no momento certo de eu levar as mudas. (Sou muito calculista. Planejo minhas ideias bem direitinho, meu povo, para sair do meu jeito... eu já vinha pastorando os funcionários, para a transferências das mudas.) Parei o carro e perguntei a um deles: “Alguém aí, pode fazer um grande favor pra mim? Preciso prestar uma homenagem ao nosso Prefeito que se foi, plantando uma caraibeira do sertão, nesse canteiro, mas não posso cavar sozinha? Alguém cava pra mim?!”. Ora, a resposta veio de imediato: “Na hora, dona!”. Um deles ainda perguntou: “Cadê a planta?”. De dentro do carro, abri o porta-malas, já rindo comigo mesma. Quem me conhece, já sabe que sou um carregamento de mudas! E lá estão: uma caraibeira (Tabebuia aurea), para mim, sempre, ipê do sertão, para eu me lembrar do Juazeiro do Ceará..., dois mini flamboyants laranjas e uma palmeira dracena. Espero que ninguém as arranque. Espero que o ipê cresça...As chuvas de fins de junho e início de julho ajudaram muito a segurar a transferência e já apareceram umas flores...e que lá do Alto, minha homenagem seja bem recebida.


Araceli Sobreira Benevides


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Arquivo Pessoal da Autora/ Junho 2015








Arquivo Pessoal da Autora/junho 2015

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Amor de cão*



            A mulher morreu, não de morte morrida, mas de morte matada, como diriam os velhos de minha cidade. A rua inteira presenciou a cena cruel e maldita. O filho, perdido e pecador já de muito tempo, dera-lhe oito facadas. Outra cena desse mundo brutal que vira manchete de tevê. As dores de mãe que sofre duplamente. Houve choro, dor, sentimento de ruína, insônia, desespero e falta de palavras. Houve gente que quis vingança, mais morte, chacina, “olho por olho, dente por dente”. Dias depois, a casa vazia mantinha o cachorro, fiel amigo, dormindo na calçada. Tristonho, faminto de carinho, vez por outra, levantava o focinho à procura da mão idosa que lhe trazia a água, a ração, o afago. E nada vinha. A família já havia vendido a casa, mas o cão estava lá. Ninguém tinha forças para levá-lo dali. Os filhos que ficaram, pareciam sem rumo, o velho pai só queria outro mundo, outra vida para esquecer a dupla tragédia de Nova Parnamirim. Todos estavam em frangalhos: os nervos, a vida, as lembranças agora apagadas com aquela morte. O filho, triste farrapo humano, estava preso para sempre agora.
            Na sombra amiga da enorme árvore que cobria a varanda, o cachorro permanecia quieto, até as crianças ficaram-lhe estranhas, nem mais lhes latia, causando-lhes gritos de sustos. Um grande silêncio entrara-lhe na alma animal e parecia que tudo na casa possuía uma mancha de sangue. A polícia viera tantas vezes procurar mais provas para o bárbaro crime. Os repórteres iam e vinham carregando seus apetrechos de sempre. Um click aqui e outro ali, mas ninguém percebia o enorme cão deitado na calçada. Já eram tantos os estranhos que entraram para ver a cena do crime, que ele nem mais grunhia para espantá-los. As horas passavam tão sem gosto, todavia não era tédio que havia ali. Era um sofrido e imenso silêncio. Sem vazio, sem calor, só a brisa de agosto, passando cheia de poeira, deixando o focinho do cachorro mais sensível... De longe, alguns latidos externos suavizavam a solidão do animal, já também um pouco velho e cansado, nem respondia mais...
            Lá pelo dia 28, um ruidoso estrondo encheu o ar da vizinhança. Homens parrudos de braços escuros e musculosos atravessaram o portão da casa, carregando marretas. Um por um levantou o braço, batendo aqui e ali. Foi preciso apenas um sábado para a casa inteira vir abaixo. Prenderam o cachorro debaixo da árvore e só pararam, quando às onze horas, um dos filhos da mulher morta chegou com as marmitas com o almoço. Todos comeram em silêncio resguardados pelos olhares ao chão. Nem mesmo nessa hora lembraram-se do animal de estimação, que de tão triste, não se mexia. Nada comera, só ficou, olhando longamente pro vazio da rua, dessa vez também vazio da casa que se fora. Fora uma longa noite de sábado.
            O domingo chegou e alguns moradores vieram ver o que sobrara da casa antiga. Entulhos, restos de paus e ferros, uma estrutura que ruína por completo: da família à casa. Tentara-se apagar as marcas da cena que horrorizou a cidade, mas a memória de alguns ainda guarda o que se passou. Uma velha grade jazia encostada ao pé do muro, foi quando, ao removê-la para junto dos outros entulhos que estavam indo para o caminhão parado na calçada, um dos filhos dera com o cão inerte, estendido ali, entre a grade e a parede escura.

            O coitado do jovem quase sucumbira junto à cena tão dura e tão cortante. A pura realidade que estava para ser apagada para o sempre; agora não apenas o silêncio da ausência marcaria aqueles dias de brisa leve, agora também o silêncio da morte do cão fiel pairaria nas almas passantes daquela rua tão distante de tudo...    


* Crônica publicada em 2005 no Jornal Tribuna do Norte - e no extinto blog "Anjos de Prata", após crime bárbaro acontecido na cidade de Parnamirim.




Imagem: Acervo Portal Portinari: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/4252