segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Boca, de palavras vãs,
promessas loucas,
beijos nunca dados...

Boca, cheia de nomes,
falares, poesia,
palavras não-ditas...

Boca, perdida em suspiros,
aberta em espantos,
calada em propostas.

Boca, desejo sentido,
Boca, expressão incontida,
Boca, minha invenção!


Em 11.09.2002

In: O chamado ou um cântico para a liberdade. 2. ed. Editora Scortecci, 2008.

 
Imagem: Pesquisa Google


* * *

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

fragmento - diário

Passei de ano. Ano muito difícil. A matemática  quase me tirou o juízo!!! Acordei cedo e na TV uma notícia me deixou muito, muito, muito triste mesmo. Mataram John Lennon!!!
Fiquei sem acreditar.
Minha mãe estava passando  pó compacto no rosto para ir trabalhar. O cheiro de meu café tomava conta do apartamento, quando a notícia chegou pela TV.
Ouvi meu nome e senti que ela me observava, enquanto meus olhos marejavam!!!

Sabia que minha mãe não gostava quando eu me vestia com a calça jeans já velhinha e gasta, dada pela tia Elza, e colocava a enorme camiseta branca pintada com o rosto de John Lennon. Ela queria que eu fosse mais vaidosa, que gostasse dos vestidos bordados que trouxerámos do Ceará, mas eu sonhava com o jeans, a sandalinha de couro ou o tênnis Bamba (eu queria mesmo um All Star!), os cabelos bem cacheadinhos e as camisetas da Praça da República. As preferidas: a de John Lennon, a do Charles Chaplin e a do Snoop! Minha mãe tem muito medo que eu me torne hippie! Acho que ela não aguentaria me ver hippie. Nem ela nem minha irmã. Mas eu sou louca para conhecer TODO o mundo! Eu quero mais paz, mais verde, menos tristeza no mundo e na minha vida.

Eu durmo ouvindo "Woman"! Já sei de cor. Inventei de aprender inglês e, por sorte, encontrei um livro de minha mãe e do meu tio Aldemir: "Inglês em 30 lições". Eles estudaram com esse livro antes de eu nascer. Agora ninguém me segura! Irei aprender inglês, escrever poesias, viajar o mundo e quem sabe minhas poesias não viram um rock de sucesso?!

[...] Imagino que meus amigos da Praça Rooselvet e do Caetano também estejam tristes. John Lennon era tudo! A gente vivia com ele na cabeça. Pô, como alguém iria querer matar uma pessoa que só pensava na paz?! Preciso fazer alguma coisa. Só escrever que minha alma chora não resolve nem me alivia.

Vou para a Biblioteca Monteiro Lobato, acho que lá posso pensar melhor. Tenho que andar. Andar vai tirar de mim essa dor! Preciso ver as ruas, as pessoas. Ainda estou com a mania de contar enfeites de Natal, se eu sair agora, poderei esquecer um pouco.      Será mesmo? Não acredito que esquecerei John Lennon. Sei tudo sobre ele!

Minha mãe acabou de sair, ela parecia sofrer um pouco com a minha dor. Suavemente, falou:
– Fica assim, não! A alma dele foi para algum lugar melhor...

Ela estava LINDA. Saia amarela, bluzinha de renda do Ceará, blazer combinando. Ela é chefe, precisa sair bonita desse jeito. O perfume "Café" tomou conta do corredor e acho que até do elevador!

– Molhe essas sambambaiase as avencas, não deu tempo de molhá-las hoje. Fiquei olhando para as plantas que estavam no corredor, ouvindo o salto do sapato de minha mãe tomando conta do ar quente dessa manhã de dezembro. De lá, do elevador, ela ainda disse:

– Filha, feche as janelas, quando sair. Com esse calourão é capaz de chover mais tarde.

Depois que mamãe desceu, fechei a porta e chorei como nunca chorei na vida. Não conhecia essa sensação antes. Nunca ninguém que eu conhecia morreu. Não sei como lidar com isso...

Abri uma página do meu Evangelho e busquei algo sobre a vida após a morte, mas nem a leitura nem nada vai tirar o buraco que essa notícia me trouxe.

John Lennon ficará para sempre no meu coração! Lennon 4 ever... Ainda não acredito, meu!








                                             09 de dezembro de 1980 - um dia marcado para não ser esquecido!


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Minha palavra é mero simbolismo,
Perdida na exterioridade de meu pensamento afoito.
Toda noção de compreensão
surge como um sol a queimar tanta ilusão.

Meus sonhos só são inteiros
quando por dentro ainda cantam em mim as suas imagens.

Querer dizer o que é vão.
Querer adivinhar a linguagem insana.
Nada se consegue sem a dúvida, a ânsia...
As árvores balançam em desarmonia,

Deixando entrever a seiva que luta
como a palavra que sai, confusa, insegura.

Recheada de mistério, fingida,
traduzida em expressão,
falseada por não ficar interna,
iludida por significar um tudo.

E o tudo se mistura ao signo
que não diz, não marca, apenas retrata.

                      II

O que vem de fora aparece com força
Eliminando as raízes apodrecidas das idéias tolas...

É de fora, do olhar, do viver
que a palavra surge...

límpida, serena, traduzindo
o que ouvi há gerações inteiras...
nunca tão clara, de vida e história
um mar imenso de idéias de um único povo...

Pegadas deixadas para quem virá,
Esquecids as horas de interior tão sereno...

O que manda, o que serve,
O que ora, o que vê...

Só a ela entende, só a ela escuta.
São imemoráveis as horas de troca.

Minha idéia, meu canto, minha voz,
sua fala, sua visão, sua resposta.

Um conjunto a fluir
num complexo ir e vir.

Eu e tu, minha parte, sua parte...
Para nossas respostas construir.


*Poema publicado no livro "O Chamado ou um cântico para a liberdade", Editora Scortecci, 2008 (2ª edição)
**Imagem: Arquivo Pessoal - trecho Açu/Mossoró - outubro de 2010




terça-feira, 5 de outubro de 2010

Garça






Ilhada
nos meus "se...não...talvez...",
eu como pão,
amanheço de sonhos vãos,
silencio um mundo dentro de mim,
com meus ciúmes, angústias, ausências.

Nada mal para uma viajante do tempo!


* * *


Imagem: Arquivo pessoal 2009


* * *

domingo, 12 de setembro de 2010

maturidade


Raiz de jequitibá,
feito as mãos calejadas de meu pai.

Sombra acolhedora
Amansada pelas mãos longas e finas de minha mãe
Já posso alcançar as entranhas da vida!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Aula de música

Era o ano de 1980. O Centro de São Paulo ainda era uma mistura de fumaça e movimento. A menina, com 14 anos, deitava-se no chão da sala de aula de ginástica olímpica sob um colchão velho. A grande escola “Caetano de Campos”, mistério maior do que o Centro da cidade. Havia alguns meses que fixara residência na Rua Avanhandava e para conhecer mais os bairros próximos ao apartamento, a menina brincava de andar.
As aulas de ginástica doíam no corpo desengonçado pela idade. Na outra escola praticava um pouco de handball, adorava. O máximo que sabia fazer em termos de ginástica era dar cambalhotas, mas a professora insistia em lhe pedir exercícios mais complexos.
– Anda, encaixe os quadris, tenha postura, levante a cabeça, olhe para o alto. Leveza, leveza!!! – Dizia isso, sem nenhuma suavidade. Forçava as alunas mais magras a soltar o corpo e a saltar nos colchões.
– Anda, menina, com essa magreza, você consegue pular mais alto.
Os olhos marejavam, nada de ânimo para voar em estrelas e movimentos leves. Estatelava-se no colchão. Outros olhos arregalados abriam-se surpresos com a queda. Ria-se baixinho porque se a professora percebesse, a bronca seria feia.
O melhor era o momento de relaxamento. Fechava os olhos em um tempo muito distante e punha-se a ouvir as músicas. A vitrola era o sonho de adolescente que só queria ouvir rock. Mas aquelas músicas faziam com que a menina soltasse a imaginação, sonhando com bailes românticos de séculos atrás. Imaginava-se descendo a escadaria do Caetano de Campos, em um vestido branco, ricamente bordado, luvas a cobrir as mãos, uma bolsinha de cetim e seu príncipe a esperá-la com um pé no primeiro degrau.
– Acorda, ô, a aula acabou!
– Graças a Deus, dizia uma, a Lucinda hoje me matou!
– Vamos, guria, parece que ficou presa... Levante! E a amiga deu-lhe a mão para sair do sonho vindo no final da aula.


Segunda-feira, 7h30, calça de ginástica azul marinho, duas listas brancas, camiseta branca, barriga esguia. O aquecimento dava-se em corrida de doze minutos. A sala era alta, com pé direito duplo para caber os equipamentos da ginástica olímpica. As meninas menores eram as que aprendiam rapidamente. Todas faziam uma fila para subir e andar na trave. Cada uma precisava fazer uma série de exercícios, saltos, um exercício de balé, “coluna esticada, mãos em movimento leve”, “ponta de pé”. Algumas, as mais espertas, praticamente corriam sobre a trave e saltavam de qualquer jeito, como eram rápidas, tinha-se a impressão que algo fora feito.
A menina sentia as mãos suadas, olhava para baixo. Pressentia a queda. A professora adivinhava-lhe o medo e ficava na sua cola, observando os movimentos.
– Postura, solte os ombros! Levante mais a perna, force a saída! O grito severo ressoava na sala, encolhendo até as mais animadas.
A garota saltava mais desengonçada do que quando subira. Os olhos da professora faiscavam. O jeito era correr lá para o fundo da classe e tentar não ser vista, ignorava os gritos e ficava a pensar no momento do relaxamento, já deitada, ouvindo as músicas.



Um dia conseguiu ficar perto dos discos. Tchaikovsky, Debussy, Chopin, Johann Sebastian Bach e o preferido: Ravel e o seu bolero. Havia uma coleção inteira de música clássica. A menina conhecia de alma as músicas tocadas durante a elaboração das coreografias para as “apresentações finais”. As melhores poderiam representar a escola em competições escolares. Ela nunca ia, mas sofria na torcida pelas colegas selecionadas.
No momento em que pôde ficar sozinha ao lado da vitrola, sentiu um certo tremor na pele guardada no agasalho Adidas. Nessa aula, a professora estava escolhendo os exercícios da rotina a ser ensaiada a partir daquela data. Com isso, esqueceu de ficar no pé da jovem sonhadora. Esta, sem ser notada, deu as costas para a turma e sentada, com as pernas cruzadas (lembrou-se da postura das costas, sempre arqueadas para frente), pôs-se a ler as resenhas das capas dos LPs. Ausentou-se por instantes, compenetrada que estava em sua leitura. Acordou com o grito solene:
– Ei, você, troque esse disco!
Como? Como faria isso sem arranhar o disco? E se a mão tremesse e o disco enganchasse? A menina assustada largou as capas e escolheu o primeiro que viu. Vivaldi. As quatro estações.
O som tomou conta da sala. Abafou os gritos de professora Lucinda. Uma a uma das meninas selecionadas para a grande apresentação posicionou-se para iniciar as repetições. A menina deu as costas de novo para a turma e ficou ali do lado dos discos. Fechou um pouco os olhos e se rendeu ao ritmo. A ponta dos dedos acompanhava suavemente a música que saía da caixa de som. Deitou-se de barriga para baixo para melhor ouvir. Balançando a cabeça nem deu pela presença da professora, bem ali do seu lado, em pé, altiva como sempre. Esta lhe pedira para voltar a faixa e a menina nem percebera nada tão envolvida que estava.
A classe nem respirou quando viu os passos largos de Lucinda passando por cima das pernas de uma dúzia de adolescentes sentadas ao redor dos colchões duros e verdes daquele espaço. A professora pôs a mão na cintura, denotando autoridade e perplexidade por não ter sido prontamente atendida. Mas qual não foi a surpresa de todas quando ela simplesmente perguntou:
– O que esta música está lhe dizendo, menina?
Abrindo os olhos, um pouco admirada também, a jovem tomou coragem e disse baixinho:
– Parece um poema!
– E o que diz este poema?
Ela fechou os olhos, como se buscasse na alma a resposta para professora mais exigente da escola. Todas as alunas pressentiram algo que nunca havia acontecido: a professora pareceu por uns instantes ter descoberto a pólvora, estava um pouco relaxada e parecia curiosa, mansa até, ao ouvir a resposta.
– A primavera chegou. Meninas passeiam alegres por entre um campo florido. Vem a chuva e molha um pouco o campo e elas se escondem. Pássaros brincam com a água das poças. Depois, surge o arco-íris, elas carregam fitas coloridas e brincam entre as flores.
– E depois?!
O ritmo da música altera-se
– O verão se impõe. Todos sentem calor, há falta de ar. Ninguém quer sair de casa. Há grandes abanadores e ventiladores para refrescar. Cai uma tempestade forte. Depois o ar muda. Alguém, um homem, eu acho, encontra uma grande árvore e se senta a sua sombra. Toma um refresco. Outras pessoas também o encontram ali.
A música avança, deixando todas as jovens quietas. As que riem são sumariamente obrigadas a mudar de atitudes com os olhares das que estão mais atentas. Há um suspense no ar:
– E...
– Começa o outono. Há um vento suave a levantar as folhas do parque. Alguns correm em direção ao parque, são crianças e mulheres com bolas, pirulitos, algodão-doce. Parece uma festa. As árvores estão sem folhas, mas alegram-se com o movimento das pessoas.
– Que mais?
– O inverno vem. Está tudo cinza, marrom, tem chuva fina, vento zumbindo entre as frestas das janelas de vidro. Ninguém sai de casa, todos se encolhem. Vestem roupas pesadas ou estão sentados em poltronas com chocolate quente nas mãos. As mães tricotam na sala e as crianças brincam de jogo de memória ou dominó. Uma vem olhar pela janela para ver o tempo.
A música continuava serenamente atiçando o olhar da classe inteira. Algumas meninas levantaram-se para ficar mais perto daquela a dizer tudo aquilo. A professora parou, olhou em volta e deu a ordem:
– Vocês anotaram, anotaram o que ela disse?! Então, mãos à obra, quero esta cena muito bem ensaiada até semana que vem. Andem, andem, se movam! – E voltando-se para a menina que agora se levantava, ainda segurando o LP nas mãos:
– Desde quando você ouve música clássica?
– Hum...hum...desde que vim para o Caetano... – nem completou o que dizia, a professora interrompeu-a de novo:
– Nunca ouvira antes?!
– Assim, um pouquinho, nas rádios, mas não como aqui. Não tenho vitrola, nem discos em casa...
– Pois a partir de hoje sua tarefa é vir para cá, de manhã e à tarde para ouvir música e anotar tudo o que sentiu. Depois da aula irá me passar tudo, ouviu bem? Tudo? E não se esqueça de anotar também os títulos das músicas. Quero também que escolha para as meninas da tarde, tem como vir?
– Mas estou em aula, professora...
– No recreio, apareça aqui no recreio e escolha as peças que quiser. Anda, vá, vá, a aula acabou. E olhe essa postura!
A menina saiu saltitando da sala. Lá fora, as amigas a rodearam, não tinham entendido nada. Todas falavam ao mesmo tempo em que guardavam os agasalhos nas mochilas. Como é que ela não levara nenhuma bronca naquela aula?! Que história era aquela de poema?! Você tá querendo é enrolar a Lucinda, não é?! Garota esperta!!!


Hoje a imagem que se retém aos olhos daquela menina dos anos 80 é o pátio imponente da escola “Caetano de Campos” e a lembrança feliz de textos e mais textos, poemas talvez, elaborados ao ritmo da música clássica. Aprendida de um modo diferente...

domingo, 25 de julho de 2010

para alçar os céus com as asas que eu lhe dei




Para Matheus...



e a todas mães que deram asas aos filhos!









Hoje, muito cedo,
procurei em suas costas
aquele pedacinho de coisa
que foi se formando,
saindo de sua segurança...
gerando-se enquanto dava suas primeiras risadas,
enquanto corria pela areia da praia,
durante aquele instantezinho em que soltei seus braços e disse:

- Vai, o mundo é seu!


Hoje, muito cedo,
comecei a aprender que seus voos ainda são curtos.
até o dia em que deixará meu ninho
para soltar-se livremente pelo azul do céu...piruetando em rasantes acelerados.
Até a hora de sonhar com seu próprio ninho!
Mas isso ainda demorará...
Por enquanto, fico a procurar seus pedacinhos de asas!
Eu mesma os coloquei ali...
principalmente quando dizia: não tenha medo, meu filho.





[após uma dessas leituras que se tornam "encontros"
e que dei de cara com a experiência da vida... apenas
um pequeno texto de Rubem Alves, "Pai", aí, no
mesmo momento, começam os breves voos aqui é
casa!]
* * *
Imagem : Pesquisa Google.

* * *










sexta-feira, 18 de junho de 2010

Transformação


Quebraram-me
f
e
i
t
o

macaúba.


Acharam-me

o c a
de espinhos.


Aventura insana
juntar-me inteira
de novo.


Tornaram-me frutas
espalhadas sob
a sombra de uma

p
a
l
m
e
i
r
a



imagem: Pesquisa Google - timblindim.wordpress.com/macauba/



Parentêses para homenagem especial: "Eu, no fundo, não invento nada. Sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e pôr à vista o que está por baixo". José Saramago

domingo, 23 de maio de 2010




Minhas mãos já velhas
e ressequidas
caminham atrás de teu rosto,
distante, assustado...

Não sentem a pele rompida
desejando correr
leves em gestos suaves...

Antes voavam nos balés, nas noites,
perfumadas, incendiavam tua boca
sensível, florida...

Hoje, despertando, vi-as roxas,
fúnebres, velhas...
teu desejo as puseram de lado,
levantam-se só para adeuses!

Pouco fazem, pouco tocam,
mãos, minhas mãos!
julguei-as belas, jovens, sempre ágeis!

Pelo menos lágrimas,
minhas lágrimas,
ainda secam!








Poema publicado no livro "O chamado ou um cântico para a liberdade" - Scortecci, 2ed., 2008.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O conto das quatro Luas


Lua Nova, momento propício para caminhar nos campos, nos Bosques. Uma áurea luz promove o aparecimento dos grilos e cigarras. Enquanto os jovens pássaros se recolhem aos galhos mais altos, Nuara afasta os cabelos negros para trás e finge não estar ali, carregando ao colo uma cesta de pães para os vizinhos de sua casa. É cedo ainda, mas a jovem sente um peso nas costas e os pés já estão molhados de suor. Atravessa o cercado que dá para o sítio das Noras e tendo somente os sons dos pequenos animais para lhe orientar, Nuara sai à procura de raízes para seus chás e preparos. Nuara estava indecisa, havia que escolher uma planta, mas lhe ensinaram que precisava da influência da lua para poder fazer a cura. Parecia que se tornara incrédula para as coisas que deveria acreditar!
“Cadê a planta, meu Deus?” Seguiu um pouco mais, desorientada pela escuridão da madrugada. Cá de baixo das árvores era como se não houvesse mais luz: tudo era inédito e sem rumo. Nuara abaixou-se sob uma grande árvore já seca pelo tempo ruim. Lá estava, haveria de preparar uma mistura bem forte para matar a bicheira de Naninho, filho de Lia, a mulher do apanhador de lenha.


Lua Crescente, Nuara encontrara um novo amigo. Ele vinha ao campo todo mês, trazendo as novidades do mundo de fora. Um dia, ao passar no portão do sítio, a moça pedira-lhe um livro para estudar Ciências. O rapaz rira de sua curiosidade, porém trouxera-lhe um Atlas histórico-geográfico com gravuras e mapas. A moça achou um encanto e passou várias tardes situando-se no Universo, na história. Havia fatos demais para entender e seu mundo de fogões a lenha e rio de pedras quase não lhe davam a chance de captar a essência das coisas dos homens de lá.A lua estava no ponto, dando lugar para o plantio de rosas e acácias... Num futuro haveria um jardim bem ali, perto da cerca para indicar que na casa uma mão suave governava as paredes brancas. Haveria arroz para cultivar no vasto terreno a sua volta.


Lua Cheia ... plenamente mulher, Nuara realiza seus desejos de acreditar mais nos cantos e ditos populares. As maçãs e laranjas completam as fruteiras, deixando as mesas sempre coloridas. Nuara anda a cavalo, nada no riacho, passeia pelo Bosque. Nessa semana, porém, a moça também decide ir à Capital, ver o mundo, as pessoas, as histórias de outras gentes. Dizem que mensalmente as mulheres, nessa fase da lua, tornam-se mais independentes e salientes. Nuara ri por dentro ao ouvir isso. Embora considere haver um pouco de verdade nessa idéia. Rememorando os meses anteriores, lembrava-se vagamente de que nessas luas tanto ela quanto outras mulheres do sítio estavam sempre a discutir sobre alguma coisa.
Em seu passeio pela Capital, além das ervas do Mercado, os livros atraem a atenção da jovem. Ela se põem a namorar as vitrines que à noite estão iluminadas de néon. Já é de madrugada quando retorna num ônibus sacolejante. Nas mãos um livro de Ciências Naturais. Puxando um pouco a cortina encardida do ônibus, Nuara dá de cara com a lua cheia. Na imensidão escura da terra, seu brilho amarelado se estende até longe, indo refletir opaco num açude que já vai ficando pra trás. “Quem determinou que Seu Marquim deveria ter nascido com um olho torto e não ter mulher alguma para lhe velar na velhice enquanto que o irmão, seu Torquato, mulato de cabelo liso tivesse a enorme e sempre cheia mulher para lhe preparar a cama e esquentar os pés?”
Nuara não atina com as coisas complicadas. Em sua simplicidade, define os seres e objetos pela experiência do dia-a-dia. A percepção de quem determina a força e o destino de tudo, é de desconhecimento humano. Para ela, a Lua trabalha nos campos, deixando cheirosa a mangueira carregada de frutos...




Lua Minguante ... os frutos agora estão pontos para as bocas ávidas... é época de plantar os alfaces e derrubar o mamoeiro murcho há algum tempo. “Será que a chuva ajudará a apagar a poeira levantada pela caravana de gente pobre?” Eles andaram quase todo o dia, pediam de sítio em sítio uma esmola, uma muda de roupa, uma rede, uma pousada, uma ágüinha, em nome do padim padre Cícero! No coração havia uma dúvida: ser tão bondosa com esses que tinham fama de pilhar, atacar as plantações, receber e nem agradecer seria tão compensador assim? Mas os velhos desses grupos, de pele tostada e olhos arredondados, sempre traziam-lhe flores de jasmim para Nuara pôr no cabelos negros. Eles sempre sorriam, um sorriso humilde e malicioso, cantavam altos quadrilhas já há muito esquecidas...
Nuara divaga, em sua solidão minguante. Percebe, mirando a luz fraca que cobre seu jardim que as respostas para seus anseios de saber mais estão para além das letras e papéis trazidos pelo amigo da lua crescente. No livro que trouxe da capital, as imagens e fotografias das plantas, raízes e animais não dizem o momento certo de puxar da terra a hortelã de folha miúda que acaba com a dor do estômago de sinhá Nina nem explicar a hora exata que o homem deve sair para caçar o preá para encher a barriga de seis crianças de olhos arregalados e barriga bichenta. Explicações detalhadas de forma e conceitos, mas nada de cheiro de orvalho, pio de coruja, caminhos de mel para dizer que a terra está pronta, a chuva já vem, ou que os pássaros e abelhas começam a aumentar sua família. A próxima lua lhe dirá o melhor momento para completar seu ciclo de curandeira das matas...A Lua mingua um olhar... Nuara sorri, enxugando as mãos nas saias e sai para fechar o portão de sua casa em mais uma noite.


* * *



Publicado em www.correiodatarde.com/artigos/6479

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Imagens: As quatro luas de Jupiter descobertas por Galileu - Pesquisa Imagens Google

segunda-feira, 22 de março de 2010

A esposa virtuosa


A mulher atirou-se aos pés do algoz de seu marido. Subitamente uma força maior a movera de seu lugar sagrado de onde apenas saía para buscar alimento pros filhos. Vivia guardada em seu recanto. O olhar sereno, naquela manhã, cobria-se de lágrimas e poeira ao atravessar o terreno desnivelado da prisão centenária. Horas antes, uma pergunta era feita para o homem que a retinha entre sedas e grandes janelas cobertas de veludo. "Onde estão seus pai e sua mãe que não vem pedir por sua vida"? O homem baixou a vista acabrunhado, sentindo a dor das grandes correntes apertando sua alma. "Há alguém que se importe por sua vida, miserável homem"? A mulher entrara envolta em lenços, deixando revelar somente os negros olhos. Esperava ver os sogros chorando, clamando por piedade. A audiência trazia esfarrapados, delinquentes e loucos e nenhum poderia ajudar o homem condenado à morte. Apertando-se entre malcheirosos, subiu um degrau de pedra, aproximando-se mais e mais do algoz. "Eu dou minha vida por ele", disse docemente, enquanto os loucos riam e arregalavam os olhos, ansiosos pelo fim da sentença. Um riso irônico formou-se nos lábios escuros do algoz. Lá atrás, uma velha encurvada gritou: "Pobre iludida"! Mas quem dera para sofrer pelos filhos raivosos e malcriados, quem perpetuava a sina de pertencer ao homem dias, noites e madrugadas sem fim, feito renegada por guardar as marcas roxas na branca de escrava qualquer sentença de morte era o luxo de lugar guardado no Paraíso. Lá se foi a mulher seguir sua morte, enquanto o homem era liberto de suas correntes. As portas mornas do Inferno abriram-se em rajadas para receber uma linda mulher de longos cabelos negros, olhar profundo, mãos macias. Já quase nua, perdera seus véus e vestes de matrona. Pisou altivamente o átrio, desafiando o destino e a dor. "Agora serei rainha"!



* * *

domingo, 7 de março de 2010

Para as tantas mulheres de minha vida...as ciganas, as sertanejas, as fortes, as "de pedra", as mães, irmãs, tias, primas, amigas"




I



Amanhã, eu serei cigana,
irei perturbar o mundo,
resserquir quem me engana.

Serei cigana, travessa, atrevida
lerei mãos, farei presságios
devastarei outras vidas...

Correrei descalça pelas ruas, cidades...
madrugando nas vilas escuras,
nem contando só verdades...

Amanhã, serei cigana, sorrindo
entre canções e sonhos
que corro, perseguindo...

28/setembro/88







II

Sonho deserto de mares
Gritando meu nome para as estradas.
O marinheiro não ouve
está escondido nos campos,
perdido, apagado entre vendavais.

Montanhas nos separam
Cada vez mais alegrando meu peito.
Ondas nervosas nos sugam
Misturando areia e alma doloridas.

Sonho fugas, abraços, distâncias
apregoando meus vícios para espanhóis.
Os cavalos todos procuram
a cigana fugida, tresloucada
em arrebóis sem destinos...

26/novembro/88*






Poemas publicados em "O chamado - ou um cântico para liberdade". Editora Scortecci. 2.ed., 2006.







Sina


A mulher do sertanejo;
mãe de sete filhos e outras tantas filhas,
pés inchados no chão ardente,
lenço colorido nos cabelos,
quando longo, coque prendendo-os;
vestido de chita, encardido,
amassado, curto demais.

A mulher do sertanejo
Olhos marejados diante do sol escaldante,
do marido distante,
dos filhos distantes,
das filhas caladas,
mal-vestidas, descabeladas,
confinadas
no silêncio de tristes mulheres sertanejas.


Imagens: Pesquisa Google - Acervo Projeto Portinari



DIA 08 de março - DIA INTERNACIONAL DA MULHER







quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Grande Navegação




Era preciso adotar uma prática totalmente nova para este problema: ou parar e deixar o vento levar a embarcação a lugar algum ou consertá-la, ali mesmo, entre as ondas, a possibilidade de vento forte e tempestade. Nada, porém, o impediria de chegar à ilha das possibilidades, dos sonhos realizados, das conquistas e glória. Foi uma noite infame. Sem fome, nem sede, tampouco descanso. Suave mesmo só o olhar no horizonte quando, agarrado à última tábua, livrava-se das ondas gigantes.





Imagem: Pesquisa Google => podblogchapeu.blogspot.com
Naufrágio (1805) , de William Turner




sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010


Que lago?
Lago de estrelas...
Cintilantes?
Ofuscantes?
Distantes?...

10/10/2003


De céu azul, lua cheia...
imensidão galáctica
para um peito só!

Estrelas ao lago...
de águas salgadas? à beira mar...
de água doce?...incrustado às
pedras, caatinga...

aconchegante entre doces beijos
ou dividido em lágrimas salgadas
(ou seria a chuva?)

Lago azul?!
E as estrelas cadentes
iluminadas pela lua?...
Minha janela aberta em sua direção,
aconchegantes estrelas fugidias
em noites de vento ou morna brisa,
feito os abraços, os braços (firmes?!)
de um homem-menino
de doce olhar,
firmes mãos...
contos, medos, sombras,
folhas, roseiras do meu jardim...
que se abrem neste setembro
(breve outubro...tanta primavera!)

E as estrelas-guia que sumiram
neste céu infinito?
Junto levaram o brilhos dos meus, teus
olhos serenos, úmidos, solitários!

Olhos cintilantes...
Ofuscantes...
Distantes...

Que prometem doces fugas,
Doces beijos...uma história
(vaga? incompleta? de amor?
Justo neste instante não quer terminar!)


11.10.2003
Poesia publicada em "O Chamado - ou um cântico para a liberdade". Scortecci, 2006.
Imagem: Pesquisa Google. Veja em gallovicente.com
***

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ruminando




Para Iris Boff cujas palavras voadoras me inspiraram



Há uma montanha atrás de mim


que guarda minha memória,


nela há um texto sagrado dizendo assim:





"- Reúna o separado.


O mundo de dentro, o mundo de fora.


O divino. Aquilo que não se vê, o que se pouco olha".





Estou ao pé da montanha,


procurando minhas lembranças,


meu povo não me acompanha.





Dorme intranquilo em meus sonhos.


Preciso me ler, religar-me a esses mundos,


ser mais do que um ser do presente.
* * *





Imagem: Visual do cume do Seio da Mulher Pedra - pesquisa Google:

www.clubedosaventureiros.com