sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Aula de música

Era o ano de 1980. O Centro de São Paulo ainda era uma mistura de fumaça e movimento. A menina, com 14 anos, deitava-se no chão da sala de aula de ginástica olímpica sob um colchão velho. A grande escola “Caetano de Campos”, mistério maior do que o Centro da cidade. Havia alguns meses que fixara residência na Rua Avanhandava e para conhecer mais os bairros próximos ao apartamento, a menina brincava de andar.
As aulas de ginástica doíam no corpo desengonçado pela idade. Na outra escola praticava um pouco de handball, adorava. O máximo que sabia fazer em termos de ginástica era dar cambalhotas, mas a professora insistia em lhe pedir exercícios mais complexos.
– Anda, encaixe os quadris, tenha postura, levante a cabeça, olhe para o alto. Leveza, leveza!!! – Dizia isso, sem nenhuma suavidade. Forçava as alunas mais magras a soltar o corpo e a saltar nos colchões.
– Anda, menina, com essa magreza, você consegue pular mais alto.
Os olhos marejavam, nada de ânimo para voar em estrelas e movimentos leves. Estatelava-se no colchão. Outros olhos arregalados abriam-se surpresos com a queda. Ria-se baixinho porque se a professora percebesse, a bronca seria feia.
O melhor era o momento de relaxamento. Fechava os olhos em um tempo muito distante e punha-se a ouvir as músicas. A vitrola era o sonho de adolescente que só queria ouvir rock. Mas aquelas músicas faziam com que a menina soltasse a imaginação, sonhando com bailes românticos de séculos atrás. Imaginava-se descendo a escadaria do Caetano de Campos, em um vestido branco, ricamente bordado, luvas a cobrir as mãos, uma bolsinha de cetim e seu príncipe a esperá-la com um pé no primeiro degrau.
– Acorda, ô, a aula acabou!
– Graças a Deus, dizia uma, a Lucinda hoje me matou!
– Vamos, guria, parece que ficou presa... Levante! E a amiga deu-lhe a mão para sair do sonho vindo no final da aula.


Segunda-feira, 7h30, calça de ginástica azul marinho, duas listas brancas, camiseta branca, barriga esguia. O aquecimento dava-se em corrida de doze minutos. A sala era alta, com pé direito duplo para caber os equipamentos da ginástica olímpica. As meninas menores eram as que aprendiam rapidamente. Todas faziam uma fila para subir e andar na trave. Cada uma precisava fazer uma série de exercícios, saltos, um exercício de balé, “coluna esticada, mãos em movimento leve”, “ponta de pé”. Algumas, as mais espertas, praticamente corriam sobre a trave e saltavam de qualquer jeito, como eram rápidas, tinha-se a impressão que algo fora feito.
A menina sentia as mãos suadas, olhava para baixo. Pressentia a queda. A professora adivinhava-lhe o medo e ficava na sua cola, observando os movimentos.
– Postura, solte os ombros! Levante mais a perna, force a saída! O grito severo ressoava na sala, encolhendo até as mais animadas.
A garota saltava mais desengonçada do que quando subira. Os olhos da professora faiscavam. O jeito era correr lá para o fundo da classe e tentar não ser vista, ignorava os gritos e ficava a pensar no momento do relaxamento, já deitada, ouvindo as músicas.



Um dia conseguiu ficar perto dos discos. Tchaikovsky, Debussy, Chopin, Johann Sebastian Bach e o preferido: Ravel e o seu bolero. Havia uma coleção inteira de música clássica. A menina conhecia de alma as músicas tocadas durante a elaboração das coreografias para as “apresentações finais”. As melhores poderiam representar a escola em competições escolares. Ela nunca ia, mas sofria na torcida pelas colegas selecionadas.
No momento em que pôde ficar sozinha ao lado da vitrola, sentiu um certo tremor na pele guardada no agasalho Adidas. Nessa aula, a professora estava escolhendo os exercícios da rotina a ser ensaiada a partir daquela data. Com isso, esqueceu de ficar no pé da jovem sonhadora. Esta, sem ser notada, deu as costas para a turma e sentada, com as pernas cruzadas (lembrou-se da postura das costas, sempre arqueadas para frente), pôs-se a ler as resenhas das capas dos LPs. Ausentou-se por instantes, compenetrada que estava em sua leitura. Acordou com o grito solene:
– Ei, você, troque esse disco!
Como? Como faria isso sem arranhar o disco? E se a mão tremesse e o disco enganchasse? A menina assustada largou as capas e escolheu o primeiro que viu. Vivaldi. As quatro estações.
O som tomou conta da sala. Abafou os gritos de professora Lucinda. Uma a uma das meninas selecionadas para a grande apresentação posicionou-se para iniciar as repetições. A menina deu as costas de novo para a turma e ficou ali do lado dos discos. Fechou um pouco os olhos e se rendeu ao ritmo. A ponta dos dedos acompanhava suavemente a música que saía da caixa de som. Deitou-se de barriga para baixo para melhor ouvir. Balançando a cabeça nem deu pela presença da professora, bem ali do seu lado, em pé, altiva como sempre. Esta lhe pedira para voltar a faixa e a menina nem percebera nada tão envolvida que estava.
A classe nem respirou quando viu os passos largos de Lucinda passando por cima das pernas de uma dúzia de adolescentes sentadas ao redor dos colchões duros e verdes daquele espaço. A professora pôs a mão na cintura, denotando autoridade e perplexidade por não ter sido prontamente atendida. Mas qual não foi a surpresa de todas quando ela simplesmente perguntou:
– O que esta música está lhe dizendo, menina?
Abrindo os olhos, um pouco admirada também, a jovem tomou coragem e disse baixinho:
– Parece um poema!
– E o que diz este poema?
Ela fechou os olhos, como se buscasse na alma a resposta para professora mais exigente da escola. Todas as alunas pressentiram algo que nunca havia acontecido: a professora pareceu por uns instantes ter descoberto a pólvora, estava um pouco relaxada e parecia curiosa, mansa até, ao ouvir a resposta.
– A primavera chegou. Meninas passeiam alegres por entre um campo florido. Vem a chuva e molha um pouco o campo e elas se escondem. Pássaros brincam com a água das poças. Depois, surge o arco-íris, elas carregam fitas coloridas e brincam entre as flores.
– E depois?!
O ritmo da música altera-se
– O verão se impõe. Todos sentem calor, há falta de ar. Ninguém quer sair de casa. Há grandes abanadores e ventiladores para refrescar. Cai uma tempestade forte. Depois o ar muda. Alguém, um homem, eu acho, encontra uma grande árvore e se senta a sua sombra. Toma um refresco. Outras pessoas também o encontram ali.
A música avança, deixando todas as jovens quietas. As que riem são sumariamente obrigadas a mudar de atitudes com os olhares das que estão mais atentas. Há um suspense no ar:
– E...
– Começa o outono. Há um vento suave a levantar as folhas do parque. Alguns correm em direção ao parque, são crianças e mulheres com bolas, pirulitos, algodão-doce. Parece uma festa. As árvores estão sem folhas, mas alegram-se com o movimento das pessoas.
– Que mais?
– O inverno vem. Está tudo cinza, marrom, tem chuva fina, vento zumbindo entre as frestas das janelas de vidro. Ninguém sai de casa, todos se encolhem. Vestem roupas pesadas ou estão sentados em poltronas com chocolate quente nas mãos. As mães tricotam na sala e as crianças brincam de jogo de memória ou dominó. Uma vem olhar pela janela para ver o tempo.
A música continuava serenamente atiçando o olhar da classe inteira. Algumas meninas levantaram-se para ficar mais perto daquela a dizer tudo aquilo. A professora parou, olhou em volta e deu a ordem:
– Vocês anotaram, anotaram o que ela disse?! Então, mãos à obra, quero esta cena muito bem ensaiada até semana que vem. Andem, andem, se movam! – E voltando-se para a menina que agora se levantava, ainda segurando o LP nas mãos:
– Desde quando você ouve música clássica?
– Hum...hum...desde que vim para o Caetano... – nem completou o que dizia, a professora interrompeu-a de novo:
– Nunca ouvira antes?!
– Assim, um pouquinho, nas rádios, mas não como aqui. Não tenho vitrola, nem discos em casa...
– Pois a partir de hoje sua tarefa é vir para cá, de manhã e à tarde para ouvir música e anotar tudo o que sentiu. Depois da aula irá me passar tudo, ouviu bem? Tudo? E não se esqueça de anotar também os títulos das músicas. Quero também que escolha para as meninas da tarde, tem como vir?
– Mas estou em aula, professora...
– No recreio, apareça aqui no recreio e escolha as peças que quiser. Anda, vá, vá, a aula acabou. E olhe essa postura!
A menina saiu saltitando da sala. Lá fora, as amigas a rodearam, não tinham entendido nada. Todas falavam ao mesmo tempo em que guardavam os agasalhos nas mochilas. Como é que ela não levara nenhuma bronca naquela aula?! Que história era aquela de poema?! Você tá querendo é enrolar a Lucinda, não é?! Garota esperta!!!


Hoje a imagem que se retém aos olhos daquela menina dos anos 80 é o pátio imponente da escola “Caetano de Campos” e a lembrança feliz de textos e mais textos, poemas talvez, elaborados ao ritmo da música clássica. Aprendida de um modo diferente...