domingo, 15 de novembro de 2015
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Mulher pós prova do ENEM 2015 – quem tem medo?
Cena I
cá
estou eu pensando nessa rua cheinha de poeira
enquanto
madame ainda não levantou
ainda
dá tempo de coar café e espiar o porteiro da esquina
Cena II
a
menina colou o ano inteiro e nunca leu nada sobre o tal feminismo, Friedrich Nietzsche, Paulo Freire, só queria balada, acontecer, virar vodka com qualquer coisa que a
deixasse animada....
Cena última
cá
está a mulher que passou a juventude irritada com as receitas e as panelas
lia
Beauvoir , Sartre, Ricoeur, Foucault e
Barthes
um
dia sacudira as panelas nas praças com as mães de luto
outro
dia, lutara contra as correntes, os tapas, os porões, as máquinas,
mas
não cozinhava nem lavava
o
homem ao lado só comia: a comida, regada ao vinho francês e a mulher, das
pernas grossas.
No
dia da prova, a pia cheia, era coisa de mulher, para mulher.
A
mágoa reinava na alma ferida.
Três dias para dar conta de
tanta louça.
Nem
Simone nem ninguém.
Nem
os filhos nem o marido iriam lavar as tralhas da cozinha.
Tinha
que ser ela mesma, com leitura, feminismo, lágrimas,
raiva,
rancor, mãos suaves, porém, para deixar sua casa arrumada, do jeito só dela,
para ir além da vida, começar novamente a comer, ser comida, dar de comer, por
a comida na boca dessa gente toda do mundo que tanto precisa de vida!
Grand
Finale
Nesse mundo onde as moscas
mortas metamorfoseadas em homens laboratórios
e baratas verdes dólar fumegantes faltam mãos e panos para enxugar as louças
velhas daqueles armários recém comprados nas grandes lojas numa promoção a
perder de vista!
* * *
Imagem: http://sensacionalista.uol.com.br/2015/10/26/enem-conheca-o-drama-de-quem-nao-tinha-google-para-ver-quem-e-simone-de-beauvoir/
sábado, 8 de agosto de 2015
uma cena de 2003
Naquele dia, ela seguiu todo o esquema de seu cotidiano: estendeu os lençóis bem abertos, prendendo-os com a firmeza dos prendedores de plástico. Juntou os brinquedos espalhados do quarto ao corredor indo todos chegar até a área em frente à casa. Nenhum som havia acordado as crianças (ainda) e sorriu. Hoje é o dia de apagar os rastros...
A despensa ficara vazia. O fogão desligado. A mesa em ordem, sem pratos, nem copos sujos. Por instantes, a ordem era tão cheia de realidade! E ela sorriu de novo.
Nada de beijos, broncas, correria, hora de mingau, hora de jogo de encaixe, hora de nanar, hora de inventar...ô relógio amargo dessa vida - a me controlar!
Caminhou, caminhou, caminhou...até encontrar a rua dos consertos. Em cada lojinha cabia algo quebrado. Carregava uma sacola de plástico. De vez em quando os objetos se encontravam na sacola e se ouviam os sons das peças soltas. Haveria conserto para mulheres más!?
Vai deixar tudo isso?
Sim.
Metade adiantado.
?
Os clientes têm mania de deixar as coisas e ir embora e eu fico no prejuízo. Agora exijo logo. Mas você não tem cara de que vai largar essas preciosidades...hehehe..
E ela viu o cinismo nele. Os bigodes enormes. Homem esperto. Não, homem burro!
Tome.
Mas eu nem disse o valor!
É para cobrir os gastos com o que não tem conserto!
E riu. Riu de si mesma. Riu da sala aberta, com as cortinas voando livres por sobre o sofá azul. Todo o tempo do mundo cabia na casa agora, sem medidas, tics-tacs, controle ou vigias. Todo o tempo do homem que trouxera os relógios da casa da mãe estava naquela sacola. Ela disse que você não sabe organizar o tempo! E, aos poucos, todos vieram para alertá-la, orientá-la. Em cada cômodo, nas estantes, na parede da cozinha...ao lado da cabeceira da cama. Pluft! Agora, estão na rua dos consertos...Já poderia ir embora de vez, como planejara um dia.
A mesa redonda, de madeira simples só faltava cair, com a brutalidade e a agitação das crianças. Cada uma queria uma coisa e cada uma não queria nada. Quem não comia, chorava. Quem comia, reclamava. Quem olhava, murchava. Meia hora para comer! Comer com calma, mastigando. Não fale com a boca cheia! Tome o suco. Olhe a hora! Vai perder a aula. Já tomou o remédio? Olha a roupa, vai manchar tudo. Quinze minutos e o prato cheiinho ainda!!! E o diabo desses ponteiros andando!
Tchau, gente. Vou-me embora!
Nem notou o vestido de casa, com buracos. A chinela velha. Abriu o portão e se foi.
Claro que voltou. Meia hora depois. Sem lágrimas. Rosto renovado. Descobrira a doença de que tinha que se livrar. A mesa estava endireitada também. A criança tinha as mãos gordas e lhe secava o rosto suado, do calor do meio dia! Faça mais isso, não! Todo mundo comeu, mas chorou também, com medo de tu não voltar....E tu voltou. E tu voltou... Eu falei para eles...ela só precisa de tempo.
Os olhares negros se encontraram, ela se lembraria disso para sempre. Não, criança, eu não preciso mais de tempo. Me livrei dele!
Paul Klee: Dancing Girl, 1940.
Pesquisa Google: http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/10018
A despensa ficara vazia. O fogão desligado. A mesa em ordem, sem pratos, nem copos sujos. Por instantes, a ordem era tão cheia de realidade! E ela sorriu de novo.
Nada de beijos, broncas, correria, hora de mingau, hora de jogo de encaixe, hora de nanar, hora de inventar...ô relógio amargo dessa vida - a me controlar!
Caminhou, caminhou, caminhou...até encontrar a rua dos consertos. Em cada lojinha cabia algo quebrado. Carregava uma sacola de plástico. De vez em quando os objetos se encontravam na sacola e se ouviam os sons das peças soltas. Haveria conserto para mulheres más!?
Vai deixar tudo isso?
Sim.
Metade adiantado.
?
Os clientes têm mania de deixar as coisas e ir embora e eu fico no prejuízo. Agora exijo logo. Mas você não tem cara de que vai largar essas preciosidades...hehehe..
E ela viu o cinismo nele. Os bigodes enormes. Homem esperto. Não, homem burro!
Tome.
Mas eu nem disse o valor!
É para cobrir os gastos com o que não tem conserto!
E riu. Riu de si mesma. Riu da sala aberta, com as cortinas voando livres por sobre o sofá azul. Todo o tempo do mundo cabia na casa agora, sem medidas, tics-tacs, controle ou vigias. Todo o tempo do homem que trouxera os relógios da casa da mãe estava naquela sacola. Ela disse que você não sabe organizar o tempo! E, aos poucos, todos vieram para alertá-la, orientá-la. Em cada cômodo, nas estantes, na parede da cozinha...ao lado da cabeceira da cama. Pluft! Agora, estão na rua dos consertos...Já poderia ir embora de vez, como planejara um dia.
A mesa redonda, de madeira simples só faltava cair, com a brutalidade e a agitação das crianças. Cada uma queria uma coisa e cada uma não queria nada. Quem não comia, chorava. Quem comia, reclamava. Quem olhava, murchava. Meia hora para comer! Comer com calma, mastigando. Não fale com a boca cheia! Tome o suco. Olhe a hora! Vai perder a aula. Já tomou o remédio? Olha a roupa, vai manchar tudo. Quinze minutos e o prato cheiinho ainda!!! E o diabo desses ponteiros andando!
Tchau, gente. Vou-me embora!
Nem notou o vestido de casa, com buracos. A chinela velha. Abriu o portão e se foi.
Claro que voltou. Meia hora depois. Sem lágrimas. Rosto renovado. Descobrira a doença de que tinha que se livrar. A mesa estava endireitada também. A criança tinha as mãos gordas e lhe secava o rosto suado, do calor do meio dia! Faça mais isso, não! Todo mundo comeu, mas chorou também, com medo de tu não voltar....E tu voltou. E tu voltou... Eu falei para eles...ela só precisa de tempo.
Os olhares negros se encontraram, ela se lembraria disso para sempre. Não, criança, eu não preciso mais de tempo. Me livrei dele!
* * *
Paul Klee: Dancing Girl, 1940.
Pesquisa Google: http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/10018
sábado, 4 de julho de 2015
Um ipê para Agnelo
Muitos
escritores escrevem por vários motivos. Eu gosto de escrever para não me
esquecer...para determinar pontos eternos e até para despistar a Morte...e essa criatura nesses dias
chegou, na cidade onde moro, levando um de seus políticos mais importantes.
Não
gosto de escrever sobre política. E, quando escrevo, sou radical. Também não gosto de escrever sobre a Morte. Gosto de escrever poesia, sobre
beija-flores, árvores e sobre aquilo que inexiste na língua comum.
Mas
sou uma pessoa comum, com olhos de poeta espantada. Cheguei para residir em
Parnamirim há exatamente quinze anos e alguns meses e a cidade foi mudando
significativamente em todo esse tempo. Vez por outra cruzava com Agnelo Alves
em eventos literários, cumprimenta-o e me divertia com o jeito simples,
simpático daquele mesmo homem que reconhecia como o político da cidade. Como pessoa comum, a gente se cruzava no
carnaval de Pirangi, nos eventos de minha rua, de meu bairro e, assim, fui me
afeiçoando à pessoa comum com quem, de vez em quando, topa com a gente e que sempre tinha uma história a contar.
E
eu adoro ouvir histórias...mas também adoro plantar árvores. E, no mundo
antigo, havia povos que homenageavam seus mortos, plantando árvores para cada
alma que se ia, significando que suas raízes, caules, troncos, frutos e flores iriam
perpetuar o nome e a história daquele ser... E foi o que fiz. No dia que Agnelo
chegou de São Paulo, por motivos mil, não pude me despedir dele do modo
convencional. Fiz do modo Araceli de ser.
No
dia seu sepultamento, estava juntando
as árvores que iria plantar no canteiro da rua Petra Kelly, bem ali atrás do
Boullevard. Um canteirinho por onde passo todo dia e que imagino cheio de
plantinhas e árvores. Desde que a rua nem era asfaltada, vivo a plantar uma
mudinha aqui e outra ali, assim como outras vizinhas e vizinhos o fazem na
extensão de toda a Petra Kelly, na tentativa de torná-la esteticamente
florida... Havia chovido e alguns funcionários da prefeitura estavam fazendo a
limpeza, retirando os matos, varrendo e juntando os entulhos. Já havia passado
pela rua umas duas vezes e acompanhado o ponto em que eles estavam limpando,
para dar tempo de chegarem exatamente no canteiro no momento certo de eu levar
as mudas. (Sou muito calculista. Planejo minhas ideias bem direitinho, meu
povo, para sair do meu jeito... eu já
vinha pastorando os funcionários, para a transferências das mudas.) Parei o
carro e perguntei a um deles: “Alguém aí,
pode fazer um grande favor pra mim? Preciso prestar uma homenagem ao nosso
Prefeito que se foi, plantando uma caraibeira do sertão, nesse canteiro, mas
não posso cavar sozinha? Alguém cava pra mim?!”. Ora, a resposta veio de
imediato: “Na hora, dona!”. Um deles ainda perguntou: “Cadê a planta?”. De dentro do carro, abri o porta-malas, já rindo
comigo mesma. Quem me conhece, já sabe que sou um carregamento de mudas! E lá
estão: uma caraibeira (Tabebuia aurea), para mim, sempre, ipê do sertão, para
eu me lembrar do Juazeiro do Ceará..., dois mini flamboyants laranjas e
uma palmeira dracena. Espero que ninguém as arranque. Espero que o ipê
cresça...As chuvas de fins de junho e início de julho ajudaram muito a segurar
a transferência e já apareceram umas flores...e que lá do Alto, minha homenagem
seja bem recebida.
Araceli
Sobreira Benevides
![]() |
Arquivo Pessoal da Autora/junho 2015 |
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
Amor de cão*
A
mulher morreu, não de morte morrida, mas de morte matada, como diriam os velhos
de minha cidade. A rua inteira presenciou a cena cruel e maldita. O filho,
perdido e pecador já de muito tempo, dera-lhe oito facadas. Outra cena desse
mundo brutal que vira manchete de tevê. As dores de mãe que sofre duplamente. Houve
choro, dor, sentimento de ruína, insônia, desespero e falta de palavras. Houve
gente que quis vingança, mais morte, chacina, “olho por olho, dente por dente”.
Dias depois, a casa vazia mantinha o cachorro, fiel amigo, dormindo na calçada.
Tristonho, faminto de carinho, vez por outra, levantava o focinho à procura da
mão idosa que lhe trazia a água, a ração, o afago. E nada vinha. A família já
havia vendido a casa, mas o cão estava lá. Ninguém tinha forças para levá-lo
dali. Os filhos que ficaram, pareciam sem rumo, o velho pai só queria outro
mundo, outra vida para esquecer a dupla tragédia de Nova Parnamirim. Todos
estavam em frangalhos: os nervos, a vida, as lembranças agora apagadas com
aquela morte. O filho, triste farrapo humano, estava preso para sempre agora.
Na
sombra amiga da enorme árvore que cobria a varanda, o cachorro permanecia
quieto, até as crianças ficaram-lhe estranhas, nem mais lhes latia,
causando-lhes gritos de sustos. Um grande silêncio entrara-lhe na alma animal e
parecia que tudo na casa possuía uma mancha de sangue. A polícia viera tantas
vezes procurar mais provas para o bárbaro crime. Os repórteres iam e vinham
carregando seus apetrechos de sempre. Um click aqui e outro ali, mas ninguém
percebia o enorme cão deitado na calçada. Já eram tantos os estranhos que
entraram para ver a cena do crime, que ele nem mais grunhia para espantá-los.
As horas passavam tão sem gosto, todavia não era tédio que havia ali. Era um
sofrido e imenso silêncio. Sem vazio, sem calor, só a brisa de agosto, passando
cheia de poeira, deixando o focinho do cachorro mais sensível... De longe,
alguns latidos externos suavizavam a solidão do animal, já também um pouco
velho e cansado, nem respondia mais...
Lá
pelo dia 28, um ruidoso estrondo encheu o ar da vizinhança. Homens parrudos de
braços escuros e musculosos atravessaram o portão da casa, carregando marretas.
Um por um levantou o braço, batendo aqui e ali. Foi preciso apenas um sábado
para a casa inteira vir abaixo. Prenderam o cachorro debaixo da árvore e só
pararam, quando às onze horas, um dos filhos da mulher morta chegou com as
marmitas com o almoço. Todos comeram em silêncio resguardados pelos olhares ao
chão. Nem mesmo nessa hora lembraram-se do animal de estimação, que de tão
triste, não se mexia. Nada comera, só ficou, olhando longamente pro vazio da
rua, dessa vez também vazio da casa que se fora. Fora uma longa noite de
sábado.
O
domingo chegou e alguns moradores vieram ver o que sobrara da casa antiga.
Entulhos, restos de paus e ferros, uma estrutura que ruína por completo: da
família à casa. Tentara-se apagar as marcas da cena que horrorizou a cidade,
mas a memória de alguns ainda guarda o que se passou. Uma velha grade jazia
encostada ao pé do muro, foi quando, ao removê-la para junto dos outros
entulhos que estavam indo para o caminhão parado na calçada, um dos filhos dera
com o cão inerte, estendido ali, entre a grade e a parede escura.
O
coitado do jovem quase sucumbira junto à cena tão dura e tão cortante. A pura
realidade que estava para ser apagada para o sempre; agora não apenas o
silêncio da ausência marcaria aqueles dias de brisa leve, agora também o
silêncio da morte do cão fiel pairaria nas almas passantes daquela rua tão
distante de tudo...
* Crônica publicada em 2005 no Jornal Tribuna do Norte - e no extinto blog "Anjos de Prata", após crime bárbaro acontecido na cidade de Parnamirim.
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